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DOUTRINAS
As normas constitucionais limitam-se a traçar quadros sem descer ao detalhe da tessitura.

APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS (II)

 

JOBIS PODOSAN

 

NATUREZA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

Já se disse que as normas constitucionais têm natureza peculiar. Elas não indicam situações abstratas e as põem sob imediato comando normativo, como de regra acontece com a legislação infraconstitucional, embora não seja incomum também esta necessitar de regulamentação. As normas constitucionais limitam-se a traçar quadros sem descer ao detalhe da tessitura. É uma construção arquitetônica sem os enchimentos. Sem uma estrutura, desaba o prédio, sem essa estrutura, desaba a Constituição escrita. Se detalhar, codifica-se, se não, constitucionaliza-se. Operários, chamados legisladores ordinários, encarregar-se-ão de suprir as lacunas, preencher os contornos, detalhar a fisionomia. O recheio da Constituição empresta-lhe vida, concretiza a sus existência.

Um exame, ainda que superficial, da Constituição revela a diferença candente entre os diversos graus de eficácia das normas nela contidas. Observe-se a diferença citando um único artigo da Constituição brasileira vigente, o art.12, no que respeita às espécies de nacionalidade brasileira admitidas no Texto Maior:

 

Art. 12. São brasileiros:
I - natos:

a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país; b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil; c) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira;

II - naturalizados:

a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral;

b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira.

§ 1º Aos portugueses com residência permanente no País, se houver reciprocidade em favor de brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes ao brasileiro, salvo os casos previstos nesta Constituição.

 

No que diz respeito à nacionalidade originária, por ser matéria tratada somente na Constituição, nada se deixou ao legislador ordinário. Só serão brasileiros natos os que preencherem os requisitos do inciso I, em suas três alíneas. Já no que respeita à nacionalidade derivada, há casos em que a Constituição esgota os requisitos, como no caso dos originários de países de língua portuguesa (inciso II, alínea a, parte final) e no da chamada naturalização quinzenária (alínea b) e outros que o constituinte reclamou a participação de outros atos que lhe integrem a vontade. No caso dos portugueses com residência permanente (§1º), ou com a exigência de reciprocidade para permitir, sem naturalização, o exercício dos direitos inerentes a esta, despiu a norma de executabilidade imediata. Sem a integração por um ato de Direito Internacional que reconheça aos brasileiros o gozo de idêntico privilégio em Portugal, os portugueses nada poderão requerer no Brasil, restando-lhes apelar para o disposto na alínea a.

Já no caso da primeira parte da alínea a (os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira), a norma tem ainda menor densidade. Deixou à discricionariedede do legislador ordinário estabelecer quem pode, ou não, ser brasileiro naturalizado. Sem a integração normativa, o dispositivo tem eficácia limitada.

A doutrina tem unanimemente reconhecido esse caráter nas normas constitucionais.

GERALDO ATALIBA, abrindo sua obra intitulada LEI COMPLEMENTAR NA CONSTITUIÇÃO,  assinala que as normas constitucionais têm natureza diversa, graus diferenciados de eficácia. Segundo ele, a própria letra do texto diferencia-se, formal e substancialmente, dos mandamentos jurídicos típicos, dotados de executabilidade imediata, proibindo ou determinando condutas. Ao contrário, “limitam-se a fixar um princípio, requerendo expressa ou implicitamente uma lei que venha a deduzir-lhe as consequências, fixar-lhe o alcance ou mesmo completar-lhe o conteúdo”. Os dispositivos que possuem força normativa para execução imediata, o mestre denomina “completos”, e, “incompletos” àqueles que faltam algum ou alguns elementos normativos.

Foi dessa incompletude, natural das Cartas Constitucionais, que se desenvolveu a noção comum de leis complementares, complementar aí como adjetivo, de que adiante falaremos.

 

NORMAS CONSTITUCIONAIS COMPLETAS QUANTO À EXECUTABILIDADE

O conceito de Constituição aberta permite que se estabeleçam graus de determinabilidade das normas constitucionais. Muitas dessas são imediatamente aplicáveis às situações que regulam — são as chamadas normas completas quanto à executabilidade.

 

A doutrina clássica as chamava de normas auto-executáveis. Segundo COOLEY,

pode-se dizer que uma norma constitucional é auto-executável quando nos fornece uma regra mediante a qual se possa fruir e resguardar o direito outorgado, ou executar o dever imposto; e que não é auto-aplicável quando meramente indica princípios, sem estabelecer normas por cujos meios se logre dar a esses princípios vigor de leis.

Diga-se que, se as normas da Constituição fossem de tal natureza, um trabalho como este não estaria sendo escrito e maior preocupação não haveria com o tema. Já vimos, no entanto, que é da natureza da norma constitucional — muito mais ainda quando se trate de Constituição analítica — ser incompleta. É no estudo destas que debruçamos nossa atenção, aliás, num determinado tipo, as que serão integradas pelas leis complementares.

CELSO BASTOS as chama de normas de aplicação. Segundo esse autor, as normas de aplicação são as normas ‘cheias’, que não demandam complementação e, muito pelo contrário, se forem complementadas, deverão sê-lo com muita cautela, já que sua estrutura basta a si mesma e qualquer regulamentação posterior poderá extrapolar os limites da constitucionalidade

Em obra conjunta com CARLOS AYRES DE BRITO, intitulada Interpretação e Aplicabilidade das Normas Constitucionais, BASTOS assinala que tais normas se caracterizam por “não deixar interstício entre o seu desígnio e o desencadeamento dos efeitos a que dão azo”

 

NORMAS QUE NECESSITAM INTEGRAÇÃO (COMPLEMENTARIEDADE)

As Constituições modernas, para além da organização, estrutura e funcionamento do Estado, cuidam de diversos assuntos que o constituinte adota como relevantes, emprestando-lhes dignidade constitucional. Chega PINTO FERREIRA a afirmar que, por natureza a priori, não há matérias constitucionais e não-constitucionais, não havendo hoje, no seu dizer, nenhum critério que estabeleça qual matéria deve ser tratada pela constituição ou pela lei. Dada a diversidade de matérias abordadas e a necessidade de a constituição não ser por demais longa, a concretização das normas constitucionais é deferida à normatividade infraconstitucional, surgindo, então, as chamadas normas de integração.

É diversificada a natureza das normas integrativas da vontade constitucional. Todas as espécies normativas  elencadas, v.g., no artigo 59 são aptas para tal. Às  vezes até a lei estadual é chamada a atender a vontade da Constituição, nada havendo nisto demais, até porque a autonomia do constituinte estadual é limitada pelos princípios da Constituição federal, segundo a regra estabelecida no art. 25. Aliás, esta regra, se não se tivesse corporificada na Constituição, estaria implícita no princípio federativo.

As normas constitucionais, assim, dada a sua diversidade de natureza, necessitam, para melhor compreensão e aplicação, ser classificadas, de modo a, agrupando-as por semelhança, ser possível extrair as consequências adequadas.

A tentativa de aplicar diretamente a norma constitucional tem gerado inúmeros problemas. É que muitas delas — talvez a maioria — não podem ser aplicadas antes da edição da norma integradora. É uma verdadeira vexata quaestio explicar ao grande público, principalmente hoje devido à expansão extraordinária dos meios de comunicação de massa, que determinada norma constitucional não pode ser aplicada, mesmo após transcorridos mais de 30 anos de vigência da Constituição. Agora mesmo, devido à expansão da pandemia do coronavírus, Prefeitos e Governadores viraram Presidentes da República, decretaram Estado de Sítio em seus territórios e limitaram os direitos de ir e vir da população, confinando-os em seus domicílios, rasgando a Constituição em mais de mil pedaços e levando o Presidente às cordas, instalando o reino da ilegalidade. Como o Presidente sairá desta verdadeira sinuca de bico?

 



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