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Política e dinheiro - Por Torquato Jardim

Não há política sem dinheiro. Poder atrai poder para expansão mútua. O poder corrompe, mais poder corrompe mais. A atração é inevitável - e, às vezes, fatal. Na França, o tesoureiro da campanha do presidente Mitterand suicidou-se ao ser investigado. O de Helmut Khol, na Alemanha, também.



Não há política sem dinheiro. Poder atrai poder para expansão mútua. O poder corrompe, mais poder corrompe mais. A atração é inevitável - e, às vezes, fatal. Na França, o tesoureiro da campanha do presidente Mitterand suicidou-se ao ser investigado. O de Helmut Khol, na Alemanha, também.

Não é a lei que resolve. O direito eleitoral - aqui e alhures, é o único em que o destinatário da norma de conduta redige a própria norma. Contribuinte não faz lei tributária; bandido não faz lei penal. Mas o candidato faz a lei da concorrência eleitoral: dita as regras formais do financiamento e da prestação de contas. Com um detalhe importante: não é crime ter as contas de candidato rejeitadas pela Justiça Eleitoral.

Tome-se este exemplo. A primeira edição da lei dos partidos políticos fixava valor máximo de doação das pessoas físicas e jurídicas. A lei eleitoral, ao cuidar das doações aos candidatos em campanha, também restringia aqueles valores. A dupla limitação pareceu exagerada ao Congresso Nacional. Assim, a última lei eleitoral (nº 9504/97) expressamente revogou os limites máximos da lei dos partidos políticos. Conseqüência: o doador, certamente o mais endinheirado, faz a doação ilimitada diretamente à conta do partido político. Este, mediante critérios próprios, transfere os recursos que quiser aos candidatos que escolher.

Por isso mesmo, é verossímil que se tomem empréstimos bancários apenas para doá-los a partido político. Se adequadamente documentada a entrada do dinheiro no partido; sua saída para um candidato - do mesmo ou outro partido qualquer; sua entrada na conta bancária obrigatória e exclusiva de campanha do candidato; de tudo informada a Justiça Eleitoral nas prestações de contas do partido e do candidato, nada haverá de formalmente contrário à lei. Outra - inteiramente outra, a questão de saber como o partido e o candidato vão repagar ou retribuir a doação do empresário ou empresa.

Ausente está um conjunto claro de regras estáveis que tornem possível um grau marcante de transparência. Tarefa que é do Congresso Nacional e da Justiça Eleitoral. Até 1992 o TSE não admitia que servidores públicos ocupantes de cargos em comissão doassem parte das gratificações aos partidos que os nomeassem. Posta a regra, o serviço de controle interno do TSE opinou pela rejeição das contas do PT em 1994. O Tribunal mudou a interpretação e as contas do PT foram aprovadas. Este partido, então, continuou a cobrar as contribuições. Agora em 2005 mudou o TSE de novo: não pode mais o partido exigir a contribuição dos favorecidos com gratificações de confiança.

A jurisprudência de tendência tolerante do TSE não ajuda. De um lado, bem reflete a sede popular de ética ao dar execução imediata à decisão condenatória pela captação ilícita de sufrágio. Isto é, cassa logo o mandato ainda que da decisão caiba recurso. De outro, todavia, tolera por demais as condutas vedadas aos agentes públicos durante as campanhas eleitorais. Conceitos como proporcionalidade e potencialidade tornam excessivamente sutis os juízos de oportunidade e conveniência. A coerência intelectual, ao menos à análise acadêmica, está em punir a mentalidade - ou a cultura, de abusar para ver no que vai dar. Inserir na compreensão da lei conceitos supérfluos à sua eficácia é não responder ao clamor de seriedade cívica que hoje emana até dos grotões.

Não é só a ambição individual que explica a intimidade monetária dos partidos e candidatos com o poder financeiro. Tenha-se em mente a presença do Estado na economia. Quase dois terços da atividade econômica nacional dependem de empréstimos, financiamentos, subsídios, isenções ou favores fiscais, investimentos diretos ou indiretos do poder público. Habitação, saneamento, hospitais, escolas, transporte por todos os meios, construção naval e aeronáutica, energia elétrica, combustíveis, telefonia, alimentação e material escolar, novas indústrias - todos os setores e serviços essenciais à composição de um IDH moderno, são financiados com dinheiro público. Dinheiro tomado via impostos, taxas e contribuições de toda a sorte e, gangrena final, via dívidas tomadas no mercado financeiro nacional e internacional. A União, por meio do BNDESPar, tem participação direta em 14 empresas e indireta em 73 outras. A Previ, a Petros e a FUNCEF em 124. Não pode o empresário ficar fora do "mercado de governo". Dessa economia estatal não podem se ausentar os empresários fornecedores de toda aquela imensa gama de bens, serviços e mercadoria.

O financiamento público exclusivo das eleições e dos partidos não é necessariamente a resposta. O modelo de gerência pública - presidencialismo autoritário mais economia estatal, sempre concentrará excesso de poder nas mãos de uns poucos. A "doação não contabilizada" (para usar o jargão do momento - "caixa 2" parece que já era) é inerente a esse sistema. Na verdade, o financiamento já é público em larga escala. A receita de publicidade perdida pelas emissoras de rádio e televisão durante o "horário gratuito" de propaganda eleitoral é compensada com os descontos nos impostos a pagar. O fundo partidário - leia-se, impostos pagos pelo povo, transfere a cada um dos quatro maiores partidos no Congresso algo em torno de doze milhões de reais por ano. Sessenta por cento dos quais para destinação quase livre.

O quanto assiste o Brasil nas últimas semanas é espetáculo triste. Não surpreende, contudo. O regime legal das eleições - posto pelo Congresso Nacional, somado à postura cada vez mais tímida da Justiça Eleitoral em construir sua competência para coibir práticas aninhadas nos desvãos da lei, não permitem vislumbrar mudança real alguma - não por agora.


Torquato Jardim, 55, sócio do escritório "Siqueira Castro Advogados", foi ministro do Tribunal Superior Eleitoral (1992-96).

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