- 20 de agosto de 2025
Sábado, onze e meia da noite, ele estava sentado frente à televisão absorto em seus pensamentos, enquanto Serginho Groissman derramava besteiras no vídeo. De repente uma sensação estranha no braço esquerdo; uma espécie de dormência. Tentou em vão movimentar aquele membro agora invadido por um formigamento insuportável. Fez tremendo esforço para levantar-se, mas não conseguiu. A vista escureceu e, em seguida, foi invadida por estrelas cadentes piscando sem parar; suas pernas não tinham forças e ele desfaleceu. Não sabe por quanto tempo ficou sem sentidos; ao acordar, passou a mão, a duras penas, no telefone, ligou para sua ex-mulher e sussurrou: "- Aninha, por favor, vem aqui em casa que eu tô me acabando..." Do outro lado, rebateu irritada voz feminina: "- Isso é hora, rapaz? Nosso casamento acabou faz tempo... Vai ver, tá embriagado de novo..." "- Aninha, por favor, é sério..., acho que tô morrendo." Ao dizer a última frase, desfaleceu novamente. "- Alô...! Alô...! Arnaldo?!???" Aninha insistiu. O sinal de ocupado - tu, tu, tu, tu... foi o que obteve como resposta. Aninha entrou no quarto bagunçado e sujo acompanhada da amiga Janice. Os cinzeiros, de tão cheios, estavam rodeados de pontas de cigarros, papéis de balas amassados, e cinza..., muita cinza, caídos; em cima da poltrona surrada algumas peças de roupa, meias sujas e cuecas manchadas de ferrugem nas partes mais profundas; na mesinha que ele usava para refeições, uma lasanha, dessas semi-prontas, pela metade, com uma colher oleosa espetada e dezoito latas de cerveja vazias. Ao ver Arnaldo seminu, jogado sobre o sofá seboso e surrado, apavorou-se; tomou-lhe o pulso que batia tenuemente e, ligeiro, com a ajuda da amiga removeu o moribundo, o instalou em seu carro e saiu chispando rumo ao pronto socorro. No pronto-atendimento uma ambulância velha escorada em dois cepos, sem a roda dianteira esquerda, impedia o desembarque do contribuinte. Sentado na parte traseira do veículo estava um enfermeiro fumando calmamente. Aninha, sem notar que o carro estava sem roda, no cepo, pediu-lhe espaço para estacionar; obteve como resposta: "- Não posso tirar o carro; o pneu está furado e não temos estepe. O Zé motorista levou a roda pra consertar na oficina de um primo seu, pois o governo não tem crédito nem em borracharia." As amigas arrastaram Arnaldo até o hall da repartição e se depararam com cenas horrorosas: um senhor com a cabeça aberta, da nuca à testa, se esvaindo em sangue; outro, ao lado, segurando a barriga ensangüentada, tentando evitar que as tripas viessem pra fora; uma velhinha toda vomitada, deitada num banco de madeira, sendo ajudada por uma mocinha trajando imundo e indecente conjunto de short e bustiê; numa maca, um garoto, mais amarelo do que catrepilha, segurava no alto o soro que lhe entrava na veia; sentado no chão, um rapazinho com um pedaço de faca incrustado na altura da omoplata; outras figuras, menos graves, mas não menos sinistras, amontoavam-se naquela sala suja e malcheirosa. Os lamentos, gritos e reclamações completavam a cena dantesca. Aninha, na sua inocência e desespero, gritou: "- Por favor, ajudem..., meu marido tá morrendo!!!" Ninguém deu a mínima. Ela, nervosa, dirigiu-se ao balcão e pediu ajuda à atendente que, sem levantar os olhos, falou: "- Não posso fazer nada... Primeiro tinha que fazer a ficha, mas tá faltando formulário... Mesmo que tivesse formulário, não ia adiantar nada, pois o médico de plantão ainda não chegou... Mesmo que tivesse médico, não ia adiantar nada; não tem ninguém para ajudá-lo a atender este pessoal que chegou primeiro... Mesmo que tivesse gente para ajudar o médico, não ia adiantar nada; estamos sem material para qualquer coisa... Tá faltando até gaze e esparadrapo... Vou lhe dar duas opções: se ele tem plano de saúde, vá a um hospital particular, caso contrário, a Funerária Retiro Final está com uma promoção muito boa para casos de enfarte...; inclusive, se o segurado morrer, o caixão sai de grátis..." Arnaldo, meio grogue, apavorou-se com a situação, largou-se das mãos de Aninha e Janice e, correndo para a porta de saída, gritou bem alto: "- SOCOOOOORRROOO!!!!!" Ao ouvir seu próprio grito, acordou assustado; identificou a voz irritante do Sérgio Groissman dizendo "Fala Garoto!" vinda da televisão. Levantou-se, agradeceu por não precisar da saúde pública, abriu uma lata de cerveja, sorveu-lhe um gole, pegou o telefone, digitou alguns números e, após ouvir uma sonolenta voz de mulher dizer "alô", do outro lado da linha, falou manhosamente: "- Aninha, vem passar a noite comigo, bem...? Tô morrendo de saudade..."