- 26 de novembro de 2024
O SISTEMA DOS QUATRO NECESSÁRIOS (2)
JOBIS PODOSAN
INTERAÇÃO E CONFLITO
A gênese dos conflitos de interesses, seja no cível seja no crime, está na vida em sociedade. É um dado em que todos se põem de acordo, em qualquer sistema econômico ou político: as relações sociais, por mais harmoniosas que sejam, em algum momento, tendem a entrar em conflito em algum momento. Identificado o ponto de tensão, a divergência pode ser resolvida pelas partes em conflito (autocomposição) ou exigir a intervenção de outrem para resolver o impasse (heterocomposição). No sistema econômico capitalista as questões tendem a surgir com maior frequência, seja em questões patrimoniais, seja em questões extrapatrimoniais, como que ínsitas ao sistema. Na atualidade, muitos focos de conflitos estão surgindo, gerando um excesso de demanda que a doutrina passou a chamar de judicialização dos conflitos. Tudo tende a desaguar no Poder Judiciário. A autocomposição, embora reconhecida e estimulada, apresenta dificuldades na sua implementação, levando tudo isso à questão do acesso às portas da justiça. Como chegar a elas?
O CIDADÃO QUER CHEGAR Á JUSTIÇA
O problema do acesso à justiça, segundo CAPELLETTI e GARTH (CAPPELETTI e GART, Fabris, 1988), sem embargo da imprecisão do termo, serve para indicar as duas vertentes básicas dos sistemas jurídicos em geral: a possibilidade de todos terem acesso ao sistema judiciário e a produção de resultados individual e socialmente justos.
Esses autores identificaram esses dois problemas básicos do acesso e, sem esquecer o segundo, voltaram suas atenções para o primeiro, apresentando o diagnóstico e propondo as soluções para cada um dos sintomas encontrados. No diagnóstico, esquematicamente, detectaram os seguintes óbices que dificultam o acesso igualitário à justiça:
a. as custas judiciais constituem uma primeira ordem de preocupação, pois são, em geral, muito altas para o povo, tanto no chamado sistema americano, que não impõe ao vencido a obrigação de reembolsar o vencedor, quanto no sistema da sucumbência, no qual o vencido paga as despesas de ambas as partes, impondo, este último, uma séria reflexão antes de alguém se aventurar na propositura de uma ação judicial, inclusive os honorários de advogado. Enfocaram, ainda, como óbice no item custas judiciais, as causas de pequeno valor, nas quais os custos podem exceder — e normalmente excedem — o valor do benefício. Também otempo — que encarece — de tramitação do processo constitui sério embaraço a desestimular a busca da justiça, pressionando os mais pobres a abandonar as causas ou a aceitar acordos infamantes;
b. O diagnóstico aponta as possibilidades das partes em conflito como uma segunda ordem de preocupação: as partes com grande volume de recursos financeiros podem melhor suportar as delongas do processo, contratar melhores advogados, retardar o andamento do feito, mediante a propositura de recursos, enfim, exercer o seu poderio econômico sobre a causa. Além disso, há também o que eles chamaram de aptidão para reconhecer um Direito e propor uma ação ou sua defesa, focalizando vários e interessantes aspectos, como diferenças de educação, de riqueza, de desconfiança no sistema judiciário e nos advogados, de falta de informação e outras, que, também, são obstáculos ao acesso. Nesse rol, incluem os litigantes habituais, que levam nítidas vantagens sobre os litigantes eventuais, pois aqueles, pela experiência, podem melhor planejar os litígios; economizam em função da quantidade de casos; mantêm ligações informais que facilitam as decisões favoráveis; diluem as dificuldades; diminuem os riscos em função da repetição de estratégias vencedoras em outros casos.
c. Chamaram atenção também para os problemas especiais dos interesses difusos, aqueles que sendo de todos, não são de ninguém em particular, como no caso do direito a um meio ambiente saudável. Em tal seara, os indivíduos não buscam correção para as lesões por interesse pessoal ou ilegitimidade jurídica.
d. Há ainda, um problema relativamente novo: aqui no Brasil se difundiu a ideia de “fazer uma faculdade”, como um objetivo de todos, independentemente da qualidade do estudo e da faculdade. As de Direito se multiplicaram de tal forma que sacrificaram, quase por completo, a qualidade do profissional que forma. O excesso gerou escassez. Excesso de advogados, escassez de conhecimentos. Aliado a isto, uma coisa ainda pior: advogados que trabalham para o crime, assessorando os criminosos na prática do crime, tornando-se parte da equipe criminosa (Código Penal, art. 29), uma espécie de Tom Hagen, advogado de Don Corleone, no filme o Poderoso Chefão.
AS SOLUÇÕES PROPOSTAS
Após o exame dos problemas, chegaram à conclusão de que as barreiras são mais salientes nas causas de pequeno valor e para os litigantes individuais, especialmente os mais pobres, e apresentaram um óbice ao equacionamento adequado. É que as soluções apresentadas, isoladamente, não resolvem, ao contrário, podem agravar o problema que pretendem solucionar. As soluções apresentam-se sempre interrelacionadas, ao ver dos autores que vimos seguindo até aqui.
A repercussão dessa obra foi tão grande que as soluções apresentadas para resolver os problemas apontados foram adotadas, com algum matiz especial, pelo sistema jurídico brasileiro vigente. A primeira onda, representada pela assistência judiciária aos pobres, tanto nas duas formas básicas, quanto nos modelos combinados foram formalmente admitidos pela Constituição vigente no Brasil. No modelo denominado sistema judicare, que considera a assistência judiciária um direito, os advogados particulares são remunerados pelos cofres públicos, numa tentativa de oferecer, mesmo aos pobres, profissionais de melhor qualidade. Esse sistema esbarra na disponibilidade financeira do Estado. O outro modelo básico é o do advogado remunerado pelos cofres públicos, através do qual o Estado paga profissionais para, com exclusividade, cuidar dos interesses dos necessitados. No Brasil, temos as Defensorias Públicas, com as deficiências de todos conhecidas. O modelo combinado, que tenta compatibilizar os dois sistemas básicos, também encontram guarida no sistema nacional.
O acesso, por tais vias, apresenta dificuldades. Primeiro, porque há de existir um grande número de advogados para cobrir a demanda; segundo porque, mesmo existindo os advogados suficientes, é necessária uma dotação orçamentária muito grande, o que escapa às possibilidades dos países em desenvolvimento; em terceiro lugar, porque o sistema é inadequado para resolver as pequenas causas individuais, pela irrelevância conjuntural destas.
A segunda onda, que concerne aos interesses difusos e coletivos, também encontrou ressonância no sistema brasileiro de acesso à justiça. No sistema clássico do processo civil não havia espaço para a proteção dos interesses difusos, pois ninguém tinha legitimidade e interesse que justificasse a propositura de uma ação. Nos anos 80 apareceram no Brasil os mecanismos de proteção a tais interesses, primeiramente com a lei da ação civil pública (Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985 ) e, em 1988, com a Constituição Federal. A partir de então tais interesses passaram a ocupar papel significativo no cenário jurídico, com vários agentes, públicos ou privados, legitimados a postular em juízo.
A terceira onda cuida de um novo enfoque de acesso à justiça, fugindo à exclusividade do judiciário formal. Entram aí mecanismos como a mediação, a arbitragem, órgão e conselhos de determinadas classes, como consumidores, crianças, idosos, índios etc. Exalta também a existência de mecanismos de prevenção, na tentativa de abortar o conflito no nascedouro.
A resenha da obra de CAPELLETTI e GARTH objetiva, no presente trabalho, demonstrar que, apesar da excelência da pregação, os conflitos continuam a multiplicar e o anseio de justiça cresce a cada dia.
É PRECISO LEVANTAR
Há muito a fazer para que o Poder Judiciário e os advogados voltem a merecer alguma confiança da população. O excesso de decisões judiciais conflitantes fazem acreditar que a lei não é a mesma para todos. A inclinação dos juízes, a depender de quem é parte no conflito, e o excesso no número de juízes que vendem sentenças e são punidos pelo Conselho Nacional de Justiça e pelas próprias Corregedorias, com esse número multiplicado infinitas vezes pelas redes sociais, levam à crença de mácula ao invés da crença na virtude que deviam inspirar os juízes. Juiz decente, que antes era pleonasmo, tornou-se uma busca e uma esperança, uma espécie de loteria. É claro que os juízes decentes ainda são maioria, mas as laranjas podres, pela generalização, começam a botar a reputação de todos no mesmo cesto.
Continua...