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UMA MÚSICA QUE DEVERIA VIRAR FILME - Por Marlen Lima

Já no primeiro roubo ele dançou / E pro inferno ele foi pela primeira vez / Violência e estupro do seu corpo - Vocês vão ver, eu vou pegar vocês". Naquela hora em que ouvia a música, as lágrimas insistiam (e insistem ainda) em arder nos olhos, mas o orgulho de que homem não chora.


Sempre que ouço Faroeste Caboclo vem uma emoção especial de quem parece que viu o que é narrado na história de João de Santo Cristo. A primeira vez que escutei a música, que foi apresentada pelo meu irmão (Edersen), eu estava de férias no Rio de Janeiro, em 1987. Naquele momento, que me lembro muito bem, eu estava no apartamento em que ele morava, e em pé ouvi aquele enredo, aquela história com um som único, inconfudível da maior banda brasileira de rock, a Legião Urbana. Ao escutar aquela coisa que me invadia (e me inavde sempre) o peito, que fazia com que o meu coração acelerasse e minha respiração ficasse tensa, com os olhos marejados, e encantado com tudo que ouvia, Faroeste Caboclo me fez viver momentos alternados de êxtase e sofreguidão ao sentir na pele o que sentiu João de Santo Cristo. Toda sua glória e sua perda, toda sua raça em viver, um ser predestinado com fraquesas, inocência e arroubos. "Sob uma má influência dos boyzinhos da cidade /Começou a roubar Já no primeiro roubo ele dançou / E pro inferno ele foi pela primeira vez / Violência e estupro do seu corpo - Vocês vão ver, eu vou pegar vocês". Naquela hora em que ouvia a música, as lágrimas insistiam (e insistem ainda) em arder nos olhos, mas o orgulho de que homem não chora me segurava a emoção, mas que acabou por perder, pois não pude conter tamanha apoteose que ouvia (assim como ainda ouço depois desses anos todos). Naquele momento, no Rio, a garganta engasgava e na viagem que sempre faço ao escutar Faroeste Caboclo, percebi o quanto a Legião tinha crescido e amadurecido como banda, já que ali presenciava mais um entre muitos sucessos que se sucederam ao longo da carreira da banda, que só teve o seu fim decretado quando Renato Russo partiu para outro mundo, em outubro de 1996. Faroeste Caboclo faz parte do terceiro álbum da banda, 'Que País é Esse', e ainda contava com a presença marcante de Renato Rocha, o baixista que era mais conhecido como Negrete e que no disco seguinte deixaria o quarteto formado em Brasília. Ele preferiu enveredar pelo caminho perdido das drogas, que nunca tem volta. Ainda hoje ele vive em Brasília, sempre (assim como afirmam os amigos próximos) cheirado e com roupa de ciclista, perambulando pelas quadras sem esquinas da Capital Federal. A música na época marcou como sendo a mais extensa e de letra mais tensa que se ouvia. Todos estão perfeitos. Renato parece que é o próprio Santo Cristo. Marcelo Bonfá bate o ritmo e mostra que sabe o valor certo de uma bateria que não rouba a cena da música, do conjunto. Dado Villa-Lobos mostra toda sua virtuosidade e brilhantismo. E Negrete deixa claro que sua participação era presente, vibrante. A música tem crescentes e baixas que nos deixam extasiados. Por isso tenho certeza que muitos vêem o que vejo quando ouve a música, que é uma linda história de amor em que deveria chegar nas telas de cinema. Até o momento não sei se existe algum roteiro escrito sobre a possibilidade de Faroeste Caboclo poder virar filme. Sei que se isso viesse a acontecer nós seríamos brindados com um dos filmes mais belos, mais instigastes. Para quem acha que é uma música enorme, no rock nacional não se viu tamanha volúpia e arroubo que só a Legião Urbana tinha capacidade, coragem, inteligência, criatividade para fazer o que fez. Quem ainda não escutou a epopéia que vive João de Santo Cristo deve ouvir com calma, e ao fechar os olhos se transporte para a Brasília - "No Planalto Central / Ele ficou bestificado com a cidade / Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal - Meu Deus, mas que cidade linda" - que vive e pulsa. P.S. A banda morreu....o rock ficou sem um pedaço de sua alma mais brilhante, Renato Russo e sua trupe. Claro que temos aí Cazuza, Cássia Eller, ambos se foram, e também perdemos muito do verdadeiro rock nacional. Temos ainda Paralamas, Barão Vermelho, Ira!....e alguns poucos novos...mas ainda assim temos muito a esperar e torcer...afinal o rock não pará. Portanto, com vocês......FAROESTE CABOCLO Não tinha medo o tal João de Santo Cristo Era o que todos diziam quando ele se perdeu Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda Só pra sentir no sangue o ódio que Jesus lhe deu Quando criança só pensava em ser bandido Ainda mais, quando com um tiro de soldado o pai morreu Era o terror da cercania onde morava E na escola até o professor com ele aprendeu Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar Sentia mesmo que era mesmo diferente E sentia que aquilo ali não era o seu lugar Ele queria sair para ver o mar E as coisas que ele via na televisão Juntou dinheiro para poder viajar E de escolha própria, escolheu a solidão Comia todas as menininhas da cidade De tanto brincar de médico, aos doze era professor Aos quinze foi mandado pro reformatório Onde aumentou seu ódio diante de tanto terror Não entendia como a vida funcionava Discriminação por causa da sua classe ou sua cor Ficou cansado de tentar achar resposta E comprou uma passagem, foi direto a Salvador E lá chegando foi tomar um cafezinho E encontrou um boiadeiro com quem foi falar E o boiadeiro tinha uma passagem e ia perder a viagem Mas João foi lhe salvar Dizia ele: - Estou indo pra Brasília Neste país lugar melhor não há Estou precisando visitar a minha filha Eu fico aqui e você vai no meu lugar E João aceitou sua proposta e num ônibus No Planalto Central Ele ficou bestificado com a cidade Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal - Meu Deus, mas que cidade linda No ano novo eu começo a trabalhar Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro Ganhava três mil por mês em Taguatinga Na sexta-feira ia pra zona da cidade Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador E conhecia muita gente interessante Até um neto bastardo de seu bisavô Um peruano que vivia na Bolívia E muitas coisas trazia de lá Seu nome era Pablo e ele dizia Que um negócio ele ia começar E o Santo Cristo até a morte trabalhava Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar E ouvia às sete horas o noticiário Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar Mas ele não queria mais promessa e decidiu que Como Pablo, ele ia se virar Elaborou mais uma vez seu plano santo E, sem ser crucificado, a plantação foi começar Logo, logo os malucos da cidade souberam da novidade - Tem bagulho bom aí! E João de Santo Cristo ficou rico E acabou com todos os traficantes dali Fez amigos, freqüentava a Asa Norte E ia pra festa de rock, pra se libertar Mas de repente Sob uma má influência dos boyzinhos da cidade Começou a roubar Já no primeiro roubo ele dançou E pro inferno ele foi pela primeira vez Violência e estupro do seu corpo - Vocês vão ver, eu vou pegar vocês Agora o Santo Cristo era bandido Destemido e temido no Distrito Federal Não tinha nenhum medo de polícia Capitão ou traficante, playboy ou general Foi quando conheceu uma menina E de todos os pecados ele se arrependeu Maria Lúcia era uma menina linda E o coração dele Pra ela o Santo Cristo prometeu Ele dizia que queria se casar E carpinteiro ele voltou a ser Maria Lúcia, eu pra sempre vou te amar E um filho com você eu quero Ter O tempo passa eu dia vem na porta um senhor De alta classe com dinheiro na mão E ele faz uma proposta indecorosa Diz que espera uma resposta Uma resposta de João Não boto bomba em banca de jornal Nem em colégio de criança Isso eu não faço não E não protejo general de dez estrelas Que fica atrás da mesa Com o cú na mão E é melhor o senhor sair da minha casa Nunca brinque com um Peixes de ascendente Escorpião Mas antes de sair, com ódio no olhar, o velho disse: - Você perdeu a sua vida meu irmão Você perdeu a sua vida meu irmão Você perdeu a sua vida meu irmão Essas palavras vão entrar no coração E eu vou sofrer as conseqüências como um cão Não é que Santo Cristo estava certo E seu futuro era incerto e ele não foi trabalhar Se embebedou e no meio da bebedeira Descobriu que tinha outro Trabalhando em seu lugar Falou com Pablo que queria um parceiro E também tinha dinheiro e queria se armar Pablo trazia contrabando da Bolívia E Santo Cristo revendia em Planaltina Mas acontece que um tal de Jeremias Traficante de renome Apareceu pro lá Ficou sabendo dos planos de Santo Cristo E decidiu que, com João ele ia acabar Mas Pablo trouxe uma Winchester-22 E Santo Cristo já sabia atirar E decidiu usar a arma só depois Que o Jeremias começasse a brigar (O Jeremias, maconheiro sem-vergonha, organizou a Rockonha e fez todo mundo dançar.) Desvirginava mocinhas inocentes E dizia que era crente mas não sabia rezar E Santo Cristo há muito não ia pra casa E a saudade começou a apertar - Eu vou me embora, eu vou ver Maria Lúcia Já está em tempo e a gente se casar Chegando em casa então ele chorou E pro inferno ele foi pela segunda vez Com Maria Lúcia Jeremias se casou E um filho nela ele fez Santo Cristo era só ódio por dentro e então O Jeremias pra um duelo ele chamou Amanhã às duas horas na Ceilândia Em frente ao lote 14, é pra lá que eu vou E você pode escolher as suas armas que eu Acabo mesmo com você, seu porco traidor E mato também Maria Lúcia, aquela Menina falsa pra quem jurei o meu amor Santo Cristo não sabia o que fazer Quando viu o repórter na televisão Que deu a notícia do duelo na TV Dizendo a hora e o local e a razão No sábado, então, às duas horas, todo o povo Sem demora, foi lá só pra assistir Um homem que atirava pelas costas E acertou o Santo Cristo E começou a sorrir Sentindo o sangue na garganta João olhou pras bandeirinhas e pro povo a aplaudir E olhou pro sorveteiro e pras câmeras e A gente da TV que filmava tudo ali E se lembrou de quando era uma criança E de tudo o que vivera até ali E decidiu entrar de vez naquela dança - Se a via-crucis virou circo, estou aqui E nisso o sol cegou seus olhos e então Maria Lúcia ele reconheceu Ela trazia a Winchester-22 A arma que seu primo Pablo lhe deu - Jeremias, eu sou homem, coisa que você não é E não atiro pelas costas não Olha pra cá filha da puta, sem-vergonha, Dá uma olhada no meu sangue E vem sentir o teu perdão E Santo Cristo com a Winchester-22 Deu cinco tiros no bandido traidor Maria Lúcia se arrependeu depois E morreu junto com João, seu protetor E o povo declarava que João de Santo Cristo Era santo porque sabia morrer E a alta burguesia da cidade não acreditou Na história que eles viram na TV E João não conseguiu o que queria quando Veio pra Brasília, com o diabo ter Ele queria era falar pro presidente Pra ajudar toda essa gente Que só faz sofrer...

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