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Amputação é única chance para muitos na Ásia

Vítimas do tsunami estão sendo obrigadas a fazer escolha macabra. Na sala de recuperação improvisada, o dr. Paul Shumack se agachou no chão embalando a cabeça de Novi, 35, que já tinha perdido o marido e o único filho no tsunami, e agora, perdia sua perna esquerda. O médico teve de amputá-la até a virilha.


Jane Perlez Banda Aceh, Indonésia Vítimas do tsunami estão sendo obrigadas a fazer escolha macabra. Na sala de recuperação improvisada, o dr. Paul Shumack se agachou no chão embalando a cabeça de Novi, 35, que já tinha perdido o marido e o único filho no tsunami, e agora, perdia sua perna esquerda. O médico teve de amputá-la até a virilha. Carente de suprimentos, a equipe cirúrgica foi forçada a usar o que foi chamado de "serrote". A operação de uma hora fez Novi, que já estava fraca devido à asma, perder muito sangue. Não havia mais sangue para uma transfusão. Os dedos dela estavam ficando brancos. "Ela está morrendo", disse Shumack, o líder de uma equipe cirúrgica de emergência de médicos e enfermeiros australianos. Dez minutos depois, ainda segurando a cabeça dela, ele compassivamente declarou sua morte. "Nós lhe demos a chance que podíamos." Autoridades internacionais de saúde alertaram para o crescente número de mortos entre os sobreviventes do maremoto de 25 de dezembro, mas os médicos daqui disseram que muitos dos mais gravemente feridos morreram antes mesmo das equipes médicas chegarem perto do centro da devastação. "Sob certo aspecto ocorreu um processo de seleção natural", disse Shumack. "As pessoas sem nenhum tratamento já estão mortas." Aquelas que correm risco mais grave são pessoas como Novi, que sofreram ferimentos relativamente pequenos e poderiam ter sido facilmente salvas se tivessem recebido atendimento médico de emergência na semana passada. Não há como saber precisamente quantas pessoas como ela estão morrendo no momento, mas os médicos dizem que o tempo está se esgotando. Após dias tentando salvar membros extensivamente infectados no hospital militar carente de suprimentos daqui, Shumack e outros têm recorrido cada vez mais à amputação na esperança de salvar vidas. O número de amputações cresceu repentinamente nesta semana, disse ele. Na quarta-feira, quatro dos nove pacientes submetidos a cirurgia tiveram pernas amputadas, um último recurso que os médicos disseram que sabem representar um futuro sem esperança em uma terra carente até mesmo de muletas, ainda mais próteses. A água do mar que varreu a cidade consistia de uma mistura imunda de esgoto, lixo e escombros. Muitos dos que não se afogaram sofreram cortes por pedaços de árvores, madeira e metal. Mesmo para os feridos que conseguiram encontrar um pouco de anti-séptico e bandagem nos campos caóticos, os ferimentos se tornaram gravemente infectados, em muitos casos septicêmicos. "Duas gotas desta água pútrida causa nestas pessoas forte pneumonia e cortes que ficam horrivelmente infectados", disse Shumack. "A septicemia é incrível. Os casos cirúrgicos têm se tornado cada vez mais complicados porque as infecções são cada vez mais severas." Escolha terrível Pelos últimos dois dias, Zaini, um magro pescador de 60 anos e único sobrevivente de sua família, vinha rejeitando as explicações dos médicos de que sua única chance de sobrevivência era ter sua perna esquerda amputada abaixo do joelho. Ele perambulou atordoado e sozinho após o tsunami. Como muitos, ele sofreu cortes profundos que não foram limpados. Seu pé esquerdo e panturrilha estavam altamente inchados. Os médicos consideraram sua perna "100% infectada". Durante um levantamento pelas alas superlotadas do hospital na manhã de quarta-feira (5/1), quando os médicos selecionaram aqueles que consideravam que mais se beneficiariam de cirurgia, Zaini insistiu que só queria que sua perna cortada fosse limpada e recebesse curativo. "Ele não tem chance a menos que haja a amputação", disse Rene Zwellinger, chefe da unidade de trauma de emergência do Perth Royal Hospital na Austrália. Zaini foi levado para sala pré-operatória assim mesmo. Ele pesava cerca de 43 quilos. Seu rosto estava coberto de medo. Os médicos buscaram um tradutor, Rusma Mohammed, para explicar mais uma vez suas opções. "Se você for amputado você terá uma chance de viver", lhe disse Rusma. "Caso contrário, você morrerá." Finalmente, Zaini concordou. Mas após a operação, os médicos ainda não tinham certeza sobre suas chances. "Se ele sobreviver pelas próximas 12 horas, ele provavelmente sobreviverá", disse o dr. Paul Luckin, o anestesiologista. Esperança Grande parte do trabalho dos médicos nesta quarta-feira foi salvar remanescentes de famílias. Dos nove homens, mulheres e adolescentes que operaram neste dia, quase todos tinham perdido a maioria de seus familiares. Pouco antes do meio-dia, um irmão e irmã, Joni, 27 anos, e Sulayani, 13 anos, estavam em duas mesas de operação com ferimentos profundamente infectados nas pernas sendo limpados. Os outros 10 membros da família deles morreram, eles disseram aos médicos. Sulayani, uma bela adolescente com um sorriso corajoso e vestindo um pijama cor-de-rosa bem passado, tinha um ferimento profundo quase do tamanho de uma bola de tênis na parte inferior de sua perna esquerda. Os médicos a levaram para a mesa de operação assim que a operação de seu irmão foi concluída. "Se isto tivesse sido tratado oito dias atrás, não seria um problema", disse Zwellinger enquanto removia cuidadosamente camadas de pele para retirar o pus. A infecção atingiu o músculo, mas ainda não tinha atingido o osso. Mesmo assim, Sulayani foi submetida ao que os médicos chamam de cirurgia radical para o que acreditavam que inicialmente foi um corte relativamente pequeno. "Pequenos ferimentos ficaram sem ser tratados por tanto tempo que acabaram se tornando grandes ferimentos", disse David Scott, um anestesiologista australiano, enquanto trabalhava na perna de Sulayani. Eventualmente Sulayani necessitará de um enxerto de pele, que poderá ser feito por uma equipe americana de médicos do porta-aviões Abraham Lincoln, que deve começar a trabalhar em poucos dias. As perspectivas para Sulayani serão boas caso ela receba o enxerto de pele, disse a equipe australiana. "Ele está com saúde agora e tinha bastante saúde antes do tsunami", disse Scott. "Esta é uma criança normal. Ela é como a criança da casa ao lado. Ela deveria estar na escola." Amputação inevitável Khatijah, 40 anos, que disse ter sido atirada de um lado para outro pela água furiosa do tsunami por 10 horas, perdeu seu marido e única filha. Seu único filho, Gunaidi Rusli, 25 anos, disse que pegou emprestado a moto de seu chefe e conseguiu trazer sua mãe ao hospital. Ela entendeu, ele disse, que sua perna direita precisava ser amputada abaixo do joelho. Mas ela estava mais preocupada com a séria infecção em seu antebraço direito. Em nenhuma circunstância ela queria ter seu antebraço amputado, o que deixaria o lado direito de seu corpo sem membros. "Nós temos que salvar o braço direito dela de qualquer jeito", Zwellinger assegurou ao filho dela. Depois, a médica disse que a amputação da perna tinha transcorrido bem, mas que o braço direito ainda era um "grande problema". Para assegurar sua cura, disse a cirurgiã, Khatijah seria transferida para um hospital em Medan, uma cidade ao sul onde as perspectivas de manutenção do ferimento limpo seriam melhores. "A Força Aérea Australiana a levará para Medan em breve, com sorte amanhã", disse Shumack para Rusli. "Quanto custará?" ele perguntou. "Será de graça", respondeu o médico para evidente surpresa de Rusli. Condições clínicas As condições de trabalho para a equipe de médicos voluntários, organizada pelo governo australiano e que entrou em ação na última quinta-feira, estavam longe de ideais. A certa altura na quarta-feira, a eletricidade acabou; eles continuaram operando à luz de tochas. Eles trouxeram 18 mil quilos de equipamento cirúrgico, mas quando realizaram sua primeira amputação na quarta-feira, eles perceberam que ficaram sem uma serra especial para amputação, conhecida como Gigli, que permite aos médicos cortar ossos com danos mínimos aos músculos e outros tecidos. Eles trouxeram apenas quatro, e apesar das serras serem frágeis demais para suportar muita reutilização, os médicos conseguiram reutilizá-las nos últimos dias, mas logo esgotaram o estoque. A operação de Novi foi atrasada enquanto um médico australiano revirava o depósito do hospital militar. Eventualmente, disse Luckin, ele encontrou o que chamou de "serrote" para substitui-la. Mas o mais difícil na quarta-feira, disse Shumack, foi a morte de Novi. Em um pedaço de papel, com pincel preto, ele escreveu: Novi, 13h30, 5 de janeiro de 2005 e pregou no saco de corpo. Um pouco depois a irmã pediu para que quatro voluntários do hospital carregassem o corpo de Novi até um pequeno jipe --tão pequeno que a ponta do saco branco de corpo ficou pendurado para fora na porta traseira, a caminho de seu enterro. Tradução: George El Khouri Andolfato

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